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Este Blogue tem como objectivo a discussão da violência em geral e da guerra na Pré-História em particular. A Arqueologia da Península Ibérica tem aqui especial relevo. Esperamos cruzar dados de diferentes campos do conhecimento com destaque para a Antropologia Social. As críticas construtivas são bem vindas neste espaço, que se espera, de conhecimento.

Guerra Primitiva\Pré-Histórica
Violência interpessoal colectiva entre duas ou mais comunidades políticas distintas, com o uso de armas tendo como objectivo causar fatalidades, por um motivo colectivo sem hipótese de compensação.


Sunday 3 May 2009

Arqueologia da agressividade humana: a violência sob uma perspectiva paleoepidemiológica - Andrea Lessa

Arqueologia da agressividade humana: a violência sob uma perspectiva paleoepidemiológica -
The archeology of human aggressiveness: violence from a paleo-epidemiological perspective


Andrea Lessa
Departamento de Endemias Samuel Pessoa, ENSP/Fiocruz Rua Joana Angélica, 192/306 22420-030 Rio de Janeiro — RJ Brasil lessa@ensp.fiocruz.br


RESUMO
As lesões traumáticas agudas são evidências diretas utilizadas nos estudos de violência no passado. Quando analisadas sob uma perspectiva paleoepidemiológica e em associação com dados da cultura material, constituem uma importante ferramenta para a interpretação do comportamento agressivo humano. Este parece mesmo ser subjacente à própria natureza humana, podendo ser registrado desde o tempo remoto dos hominídeos ancestrais do homem e em qualquer tipo de organização social. O estudo do padrão e da distribuição das marcas de golpes e outras agressões físicas contribuem para o entendimento da emergência, aplicação, das motivações e do impacto da violência ao longo do tempo, bem como da sua manutenção na atualidade.
Palavras-chave: arqueologia, paleoepidemiologia, violência, traumas agudos.
ABSTRACT
Acute traumatic injuries provide direct evidence that is used in studies of violence in the past. When analyzed from a paleo-epidemiological perspective and in conjunction with data from the material culture, these injuries are an important tool in the interpretation of human aggressive behavior. The latter, which seems to underlie human nature itself, has been recorded as far back as the remote time of man's ancestral hominids and in any type of social organization. By studying the pattern and distribution of blow marks and other signs of physical aggression, we contribute to our understanding not only of the emergence, use, motives, and impact of violence down through time but also of its continuance today.
Keywords: archeology, paleo-epidemiology, violence, acute trauma.


Introdução
A violência tem se tornado cada vez mais tema de interesse para pesquisadores das áreas da saúde e das ciências sociais, os quais procuram identificar suas causas no plano regional e compreender seu impacto social. A crescente emergência da violência — principalmente nas grandes metrópoles, tanto em países ricos como nos considerados subdesenvolvidos — garantiu-lhe o posto de uma das principais preocupações no campo da saúde pública em todo o mundo. No Brasil, a análise dos dados de mortalidade na década de 1980 (Souza et al., 1995) revelou que a violência aparece como segunda causa de óbito no país a partir de 1989, contribuindo com 15,3% da mortalidade geral, atrás apenas das doenças cardiovasculares.
Nos Estados Unidos, a violência interpessoal já é a principal causa de mortes prematuras entre adultos jovens (Cornwell et alii, 1995), sendo considerada uma epidemia e um problema prioritário de saúde. Isso levou a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) a criar um Plano de Ação Regional para prevenção e atuação contra o crescimento da violência (OPAS, 1993).
Apesar da crescente ênfase dada às questões que envolvem a violência na atualidade, manifestação desta é um fenômeno que acompanha o homem desde o alvorecer da espécie, parecendo constituir elemento inerente à vida em sociedade. E é justamente nesse ponto que antropólogos e arqueólogos, em especial os bioarqueólogos, têm contribuído para os estudos da violência. Como bem coloca Walker (2001), a perspectiva histórica subjacente a esses estudos paleoepidemiológicos tem um grande potencial para produzir conhecimento sobre a complexa e intricada teia de fatores biológicos e socioculturais que moldam as condições para a emergência e manutenção da violência moderna.
Um bom exemplo desse potencial está nos dados produzidos principalmente na última década, que têm contribuído para produzir novas reflexões sobre a antiga idéia de que as sociedades ságrafas viviam pacificamente, em perfeita harmonia entre si, com formas de violência restritas a conflitos não-letais ou a lutas rituais. Análises osteológicas voltadas exclusivamente para a questão da violência vêm demonstrando que ela não surge no contexto cultural somente a partir da ruptura social e econômica causada pelo contato estressante com os colonizadores europeus — como até então pensavam os estudiosos e os leigos, admitindo-se o conceito rousseauniano do 'bom selvagem' (Wilkinson, 1997; Walker, op. cit.).
Marcas inequívocas de golpes confirmam a ocorrência de episódios de agressão física desde a época dos australopitecos, há mais de um milhão de anos, até a idade moderna, em todo o mundo. Foram encontrados, por exemplo, mais de um crânio desses antepassados distantes do Homo sapiens com uma espécie peculiar de fratura que consiste em duas depressões muito próximas uma da outra na parte superior da calota craniana. Em associação com esses crânios recuperaram-se úmeros de antílopes cujos côndilos articulares encaixavam-se perfeitamente nessas depressões, sugerindo fortemente que eles haviam sido utilizados para a aplicação dos golpes (Wells, 1964).
A arqueologia vem assim desvendando um lado da história da humanidade que expõe as atribulações da vida em sociedade, o equilíbrio sutil entre convívio e conflito. Desde o passado mais remoto, o homem tenta manejar a difícil conciliação de interesses, poderes, valores, hábitos, mudanças e emoções inerentes ao ato de viver. A ruptura temporária de alguns mecanismos que tecem a teia dessas relações de convívio — e o rearranjo permanente dos papéis sociais — alimenta situações potenciais de violência. Esse dinamismo próprio das sociedades humanas, portanto, sempre comportará eventos violentos, variáveis segundo os contextos específicos em que estão inseridos (Lessa et al., 2001).
Estudar o comportamento humano a partir da pesquisa arqueológica é, portanto, um exercício de reconhecimento e atribuição de significado a pistas materiais do imaterial. E estudar a violência a partir dessas pistas significa encontrar sinais de um comportamento regular ou esporádico no qual a vida foi ameaçada, o sofrimento físico existiu, a liberdade foi tolhida, ocorreu a expropriação. É também um exercício de sobrepor às análises quantitativas um significado que considere, pelo menos em parte, a complexidade do conceito de violência (idem, ibidem).

Definindo violência no contexto paleoepidemiológico
Apesar de sua persistência ao longo do tempo, as motivações, o impacto, o entendimento e a aplicação da violência mudaram muito no decorrer da trajetória humana, estando sempre intimamente relacionados ao contexto histórico e geográfico dos grupos sociais.
Existe portanto uma grande diferença entre as formas de violência física estudadas pelos epidemiologistas e aquelas pesquisadas pelos paleoepidemiologistas, o que concede ao conceito uma delimitação bastante abrangente e até mesmo divergente em alguns aspectos. Nos estudos de violência na atualidade, por exemplo, estão incluídos os ferimentos e as mortes acidentais. Nos estudos de violência no passado, por sua vez, os acidentes são relacionados a atividades cotidianas e, por conseguinte, incluídos em outra categoria. Do ponto de vista paleoepidemiológico, são considerados apenas os traumas causados por ações intencionais relacionadas a episódios de agressão física.
Mas mesmo essa definição tão ampla nem sempre é consensual, uma vez que o próprio conceito de violência pode variar bastante segundo as normas de cada tempo e cultura. Ainda hoje, em algumas sociedades, o espancamento de mulheres e crianças como forma disciplinar é socialmente aceito por ser considerado um meio regulador eficiente (Strauss apud Walker, op. cit.).
Assim, cabe enfatizar que o estudo da violência no passado está embasado em conceitos formulados no arcabouço teórico das ciências sociais e humanas, e que o tema não escapa a uma subjetividade que levanta certas questões passíveis de reflexão.
O pesquisador, portanto, deve sempre ter em mente que o que está sendo considerado por ele como um ato de agressão nem sempre era visto dessa forma dentro do ethos da sociedade estudada. Um bom exemplo são os ferimentos, muitas vezes letais, sofridos durante cerimônias e lutas rituais. Podem ser citadas cerimônias como as capacochas, dedicadas ao Inca e regularmente realizadas em Cusco durante o período pré-hispânico, na qual mais de cem crianças de ambos os sexos eram conduzidas e preparadas pelas mães para o sacrifício, que consistia em arrancar-lhes o coração ainda pulsando. Tais crianças se convertiam em seres sacralizados e suas múmias se transformavam em oráculos, para regozijo de sua família e de sua etnia (Soriano, 1997). Os astecas, desde que nasciam, eram educados para a aceitação do sacrifício aos deuses, considerado honra religiosa máxima (Duverger, 1983). Entre os tupinambá era comum o ritual antropofágico, quando os prisioneiros de guerra eram devorados pela tribo, com o objetivo de fortalecimento pela apropriação das qualidades do outro. O sacrifício honrava vítima e captor (Staden, 1968).
As lesões provocadas por esses e outros tipos de cerimônias litúrgicas são sem dúvida analisadas e interpretadas no âmbito dos comportamentos violentos, uma vez que os elementos-chave 'trauma agudo' e 'intencionalidade' estão presentes. Mas o simbolismo que reveste essas práticas expressa de fato hostilidade? Até que ponto elas fornecem indícios sobre a agressividade humana e suas principais motivações, como as disputas políticas, econômicas ou pessoais? Em que medida estão relacionadas a períodos de crise e de tensão social? A subjetividade dessas questões não traz a necessidade de descaracterização da violência nas ações praticadas nesse contexto, mas obriga a uma reflexão do seu significado para a sociedade estudada.
Também merece análise o significado dos ritos de passagem, os quais, diferentemente dos sacrifícios acima citados, não têm sido relacionados às práticas violentas, uma vez que não existe a intenção explícita de ferir ou matar. Mas como negar o sofrimento físico e os possíveis malefícios à saúde causados, por exemplo, pelos ritos que marcavam a primeira menstruação das moças tupinambá, quando eram escarificadas nos braços, peito e ventre (Metraux, 1979), ou das moças tikúna, as quais tinham seus cabelos arrancados (Nimuendaju, 1952)?
Melatti (1993) analisa e interpreta os maus-tratos impostos durante esses ritos como o último ato de hostilidade que um grupo de indivíduos pratica contra o outro, que em breve, será incorporado e reconhecido como igual. Ainda que tal segregação hostil não seja explícita, cada grupo de indivíduos goza de uma solidariedade interna que une todos os seus membros e os opõem aos membros dos outros grupos. Os ritos, ao marcarem a passagem de um indivíduo ou de vários indivíduos de um grupo para outro, produzem uma intensificação do estado que será modificado, tornando manifesta uma hostilidade latente.
Esse costume de maltratar, embora praticado contra pessoas queridas e ser socialmente aceito e até desejado, não seria a expressão de uma forma de violência implícita, de um antagonismo próprio da natureza humana?
Apesar da subjetividade do tema, uma forma consensual de agressão física intencional tem sido a mais comumente observada nos remanescentes esqueletais arqueológicos: a violência interpessoal, revelada pelas marcas de golpes provocadas durante lutas corpo-a-corpo e de flechadas. Essas evidências diretas podem estar relacionadas a atividades de natureza bélica, intergrupal, ou a brigas domésticas, intragrupais. Ambas as formas de tensão social podem estar registradas de forma regular e constante, distribuindo-se como um padrão cultural ou na forma de eventos isolados, assinalando processos temporários. Os dados relativos ao padrão e à distribuição das lesões ósseas ao longo do tempo e segundo os diferentes segmentos sociais, em associação com os dados culturais, são a chave para a interpretação das formas específicas de violência de cada grupo estudado.

Os sinais de conflito no passado
Para se estudar a manifestação da violência atual no Brasil, as pesquisas são realizadas com base nos dados de mortalidade, coletados a partir de listas fornecidas pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e também das pesquisas nacionais de vitimização (Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar, PNAD), realizadas pelo IBGE.
Já para se inferir o comportamento violento na pré-história, os especialistas realizam um trabalho semelhante ao dos detetives, juntando pistas de diversas naturezas. Os dados utilizados podem ser provenientes de estudos etnográficos, que fornecem suporte para inferências sobre aspectos socioculturais; do registro iconográfico, em que podem ser observadas cenas de lutas e batalhas em pinturas rupestres, murais e na decoração de artefatos como recipientes cerâmicos; do registro arqueológico, o qual evidencia conflitos a partir da presença de estruturas defensivas como trincheiras, barricadas e fortificações, achados de armas e pela observação de aldeias ou cidades destruídas ou abandonadas, principalmente quando são encontrados indivíduos que não tiveram um sepultamento intencional; e finalmente, pelo registro osteológico, que sinaliza a presença de golpes e outras agressões físicas.
A observação da composição e disposição dos enterramentos, em associação com outros dados, também pode ser útil. Tumbas múltiplas, por exemplo, podem indicar um episódio de batalha, e a ausência de homens adultos, principalmente jovens, pode sinalizar que os mesmos atuavam como guerreiros e morreram durante um conflito, longe de sua aldeia.

A tensão social nas sociedades pré-históricas
A tensão social nas populações ameríndias apresenta diferentes motivações e manifesta-se sob circunstâncias diversas, uma vez que sua ocorrência está intimamente relacionada às práticas culturais dos grupos envolvidos. A antiga perspectiva robbesiana — argumentando que a guerra é um estado de existência normal entre as sociedades tribais, já que estas não dispõem de uma autoridade organizada capaz de impedi-la — há muito deixou de figurar entre os estudos antropológicos. Chagnon (1977), ao afirmar que, entre as sociedades tribais, a guerra é uma forma de comportamento político esperado e não requer explicações especiais, ao contrário da religião e da economia, ignora as especificidades de cada sociedade que levam a situações de tensão social.
Ainda que os conflitos sejam vistos como uma expressão social, eles podem estar inseridos também em uma esfera individual, na condição de brigas domésticas ou desentendimentos entre dois ou mais indivíduos de um mesmo grupo. Curiosamente este tipo de rixa intragrupal raramente é focalizado (Carneiro, 1992). Os conflitos ocorridos na forma de combates ou guerra1, ou seja, intergrupais, são normalmente o alvo das pesquisas sobre violência nas sociedades ameríndias atuais e passadas (Bamforth, 1994).
A freqüência, a intensidade e a forma dos conflitos entre sociedades pré-históricas, analisadas principalmente a partir da década de 1980, têm sido relacionadas aos processos de produção de bens e a outras exigências relativas à sobrevivência. Esta abordagem, chamada 'materialista', conseqüentemente direciona seu foco para a interação entre o ambiente e a organização econômica e suas correlações com os aspectos sociais, políticos e militares (Ferguson, op. cit.).
Se a crescente desigualdade na distribuição de riqueza pode ser apontada hoje como uma das principais causas para o agravamento da violência estrutural, no passado pré-histórico esse fator também causou a emergência ou o agravamento de períodos violentos. Considerando-se as devidas proporções, aquelas sociedades também passavam por momentos de tensão social quando surgiam as desigualdades e o acúmulo de riqueza por parte de determinados segmentos, situações possíveis durante processos de hierarquização.
Em sociedades igualitárias, ou seja, em que não há uma estratificação social clara e uma pessoa específica não consegue exercer um domínio indiscutível sobre as outras, o líder do grupo pode até promover conflitos em prol de interesses próprios; porém só pode fazê-lo pela livre concordância dos demais. Nesses casos, não há uma estrutura militar permanentemente organizada, com a emergência dos guerreiros como uma classe social distinta. À medida que há uma complexificação da organização política, as atividades militares também tornam-se mais complexas (idem, ibidem).
A competição por uma posição de maior influência e controle sobre os demais pode gerar episódios de tensão social e violência intragrupal. Situações como essas, entretanto, ocorrem em sociedades que apresentam algum grau de hierarquização, estando geralmente ausentes ou reduzidas ao mínimo em sociedades simples. Entre os grupos caçadores-coletores, por exemplo, um status social destacado normalmente é adquirido gradualmente, por demonstrações repetidas de inteligência, habilidade e experiência, principalmente em assuntos relacionados à subsistência. A condição de líder, portanto, não é conquistada pela utilização da força, e seu poder é bastante limitado. Além do mais, o líder assume determinadas responsabilidades e comportamentos, como ser generoso e compartilhar seu alimento e seus bens materiais (Carneiro, op. cit.).
A competição por território, por sua vez, tampouco é motivo de disputas violentas entre grupos de caçadores-coletores. Estudos etnográficos apontam o reconhecimento, a exploração e a defesa de diferentes territórios por um mesmo grupo. A mobilidade, decorrente da disponibilidade de recursos, provavelmente é um fator que atenua os conflitos intergrupais (idem, ibidem). Ferguson (1997) enfatiza que, entre os grupos nômades e seminômades, as situações de tensão social são facilmente resolvidas com o deslocamento de uma das partes envolvidas, alternativa que implica menores custos do que o emprego da violência.
Com o advento da agricultura, a disputa por território passa a ser mais séria, tornando-se aguda com o aumento do grau de sedentarismo. A disputa por terras produtivas e alimentos estocados parece aumentar a freqüência, a intensidade e o significado dos conflitos (Carneiro, op. cit.).
Também o roubo de alimentos, de matérias-primas raras ou de bens manufaturados certamente atua como um incentivo às guerras ou outro tipo de rixa intergrupal. A concentração desses produtos, porém, não costuma ser observada caso não haja um sistema de trocas extensivo. Ferguson (1997) argumenta que o saque aos grupos de viajantes e a disputa por uma posição hegemônica dentro de redes de comércio são provavelmente os incentivos mais comuns aos conflitos entre sociedades antigas.
A produção de excedentes, bem como a sua estocagem, e a presença de um sistema de trocas regular e organizado pressupõem um certo grau de hierarquização social, que constitui elemento-chave para o aumento dos conflitos intragrupais. Um incremento na complexidade dos arranjos sociais e uma maior concentração de poder nas mãos de um ou mais líderes são fatores que certamente desequilibram a harmonia das relações entre os membros de um grupo, pois passa a haver o benefício de interesses de poucos em detrimento dos interesses dos demais, gerando conflitos internos e externos. Smith (1997), por exemplo, ao interpretar os padrões de trauma relacionados à violência em sítios do oeste do vale Tennessee, constrói a hipótese de gênese de uma estratificação social entre esses grupos caçadores-coletores, nos quais foram encontrados escalpos e peças-troféus, associados à demonstração de força e prestígio.
Causas externas, tais como modificações climáticas profundas que comprometam a aquisição e produção de alimentos, bem como um desequilíbrio demográfico que afete a oferta de produtos locais e forâneos também podem desencadear resoluções violentas para as crises (Ferguson, 1997).
Maschener (1997), analisando remanescentes esqueletais, estruturas defensivas e tecnologia em grupos sedentários da costa noroeste dos Estados Unidos, a princípio atribuiu a ocorrência de violência naquele local a uma transição climática. Hoje esta é entendida como uma etapa posterior do processo, já que a consolidação do sedentarismo e uma intensificação econômica, baseada na pesca massiva do salmão passaram a ser apontadas como as principais causas das situações de tensão social.
A violência também pode ser empregada para a aquisição de escravos e de parceiras por meio de raptos. Wilkinson (op. cit.), analisando o registro osteológico de um sítio no sudoeste do estado norte-americano de Michigan, encontrou uma maior prevalência de lesões relacionadas à violência em mulheres do que em homens. Foram propostas duas hipóteses de interpretação para o padrão encontrado de lesões: o rapto dessas mulheres, caso fossem forâneas ao grupo, e a tentativa de rapto, caso pertencessem ao grupo. Nenhuma diferenciação no acompanhamento funerário permitiu esta distinção.
Um outro fator de relevância para a questão dos conflitos intra e intergrupais é a expansão política de estados sobre sociedades com outro tipo de organização política e social, promovendo profundas transformações estruturais como emergência de novas doenças, desequilíbrio demográfico e utilização de novas tecnologias. As mudanças muitas vezes fogem ao controle dos colonizadores e podem até ocorrer sem que haja um contato direto entre as duas sociedades. A esse espaço de transformações, Ferguson e Whitehead (1992) chamaram 'tribal zone'.
Na verdade, esse fenômeno pode ocorrer entre outros tipos de sociedade, contanto que haja um domínio ou influência da mais forte e complexa sobre outra. A expansão pode envolver os aspectos político, econômico, militar e ideológico, alterando as relações intergrupais, intragrupais e com o meio. Um bom exemplo é a expansão política e militar incaica e a expansão ideológica tiwanakota, ambas sobre os povos andinos.

Paleopatologia e violência
A identificação de sinais de violência interpessoal no material osteológico tem sido realizada com relativa facilidade por meio de indicadores específicos, sugeridos a partir de estudos epidemiológicos clínicos e em material arqueológico tais como as fraturas em depressão nos crânios; as fraturas na face, principalmente nos ossos nasais; as fraturas nos terços médio e distal nas ulnas; e a presença de pontas de projétil encravadas nos ossos (Steinbock, 1976; Ortner et al., 1985; Merbs, 1989; Walker, 1989).
Outros tipos de fratura, com localização anatômica variada, no entanto, podem apresentar dificuldades, devendo ser analisados de forma sistêmica e considerando-se possíveis interpretações biomecânicas que possibilitem a sua associação a episódios de agressão ou acidentes. As fraturas perimortem, que não apresentam sinais de cicatrização, também devem ser observadas com cautela, uma vez que podem ter sido causadas após a morte do indivíduo ou graças a processos tafonômicos.
Também são considerados sinalizadores de violência os traumas provocados por decapitação, escalpo, canibalismo e desmembramento, ainda que não sejam comuns no registro osteológico. Diferentemente das lesões antes citadas — as quais têm sido relacionadas a guerras e confrontos relativos a assuntos tais como rapto de mulheres, domínio sobre territórios e recursos e ainda conflitos matrimoniais —, esses sinalizadores de violência estão normalmente associados a aspectos rituais. A vítima, para sofrer qualquer dessas agressões, provavelmente já se encontrava totalmente imobilizada ou até mesmo morta, o que indica que o ato de violência não ocorreu por reflexo instintivo de defesa da própria vida ou por necessidade de resolução de um conflito, mas revestia-se de importância simbólica.
Nas sociedades modernas industrializadas, um grande número de fraturas de crânio está relacionado com acidentes, principalmente automobilísticos, ainda que predominem as causas ligadas à violência, sobretudo entre os 15 e os 50 anos (Gurdjian, 1973). Entre as populações pré-históricas, a agressão interpessoal também tem sido apontada como a principal causa das fraturas de crânio (Walker, 1989; Wilkinson, op. cit.; Martin, 1997; Lambert, 1997; Robb, 1997; Smith, op. cit.), ainda que acidentes pudessem ocorrer com relativa freqüência, principalmente entre grupos que ocupavam ambientes com relevo irregular ou montanhoso, ou que tivessem práticas culturais que incluíssem as escaladas regulares e a incursão em terrenos perigosos.
A diferenciação entre as duas causas principais das lesões de crânio pode ser feita com base nos padrões observados para as fraturas. Aquelas relacionadas a episódios de violência tendem a concentrar-se na região frontal, além de apresentar um padrão regular de tamanho e forma, estreitamente relacionado com os tipos de arma disponíveis para o ataque. As fraturas em depressão, de forma oval e circular, são as mais comuns nos registros arqueológicos. As lesões atribuídas a acidentes, por sua vez, apresentam uma distribuição irregular, além de tamanhos e formatos variados, ocorrendo com mais freqüência as linhas de fratura (Walker, 1997, 1989).
A menos que o grupo em estudo tenha sido vítima de um massacre generalizado, as fraturas ocasionadas por violência devem apresentar também um padrão sexual e etário, dependendo da situação que motivou a atitude agressiva. A captura de escravas e parceiras, por exemplo, deve revelar uma alta prevalência de lesões entre mulheres em idade reprodutiva (Wilkinson, op. cit.). As disputas por território e recursos, por sua vez, devem atingir com maior freqüência os homens adultos, uma vez que são eles normalmente os responsáveis pelas rixas intergrupais (Wrangham et al., 1996).
Robb (op. cit.), ao analisar coleções italianas, observou que após o período neolítico houve um aumento expressivo da freqüência de fraturas de crânio nos homens, quando comparados às mulheres; e que, a partir da Idade do Ferro, este aumento se estende para todos os tipos de fratura. O autor não associa esse padrão de lesões ao resultado direto da violência bélica, mas ao desenvolvimento de regras quanto aos papéis de cada gênero, que prevêem um comportamento mais violento entre os homens e reforçam a divisão sexual de tarefas, pelas quais as mulheres realizariam atividades menos pesadas e violentas.
As fraturas ocasionadas por acidentes, por outro lado, podem ocorrer em ambos os sexos de forma equilibrada, a menos que estejam relacionadas a alguma atividade regular específica, além de incluírem, proporcionalmente, as crianças e os adultos senis.
A severidade e a localização das fraturas de crânio podem indicar a existência de intencionalidade (ainda que não consciente) na forma e nas conseqüências do ataque. Uma maior prevalência de lesões no frontal, por exemplo, indica a escolha desta região para a aplicação do golpe. Caso este fosse desferido de forma aleatória, a região parietal deveria apresentar as maiores freqüências, já que constitui uma área maior. Por outro lado, o frontal apresenta o dobro da resistência dos parietais, podendo ser alvo, portanto, de lesões menos severas, com menor grau de letalidade. Este dado, associado a uma baixa prevalência de fraturas perimortem, pode indicar que o agressor intencionava apenas ferir a vítima e não matá-la (Wilkinson, op. cit.). A severidade do ferimento é sugerida pela presença ou ausência de lesão endocranial, sendo as mais graves aquelas que apresentam afundamento da díploe e da tábua interna (Walker, 1989; Lambert, op. cit.).
O tipo de ataque desferido contra a vítima pode ser inferido pela localização das lesões. Quando elas ocorrem no frontal e nos parietais, são associadas a combates corpo a corpo, com um agressor destro, no caso de fraturas no parietal esquerdo (Lambert, ibidem). Lesões no occipital podem indicar que o golpe foi desferido quando a vítima encontrava-se em fuga, de costas para o agressor, ou quando estava imobilizada. Lambert (ibidem) argumenta que a inexistência de um padrão na localização das fraturas entre as mulheres, com ocorrência em qualquer região do crânio, pode indicar conflitos domésticos com os maridos, já que esse tipo de agressão não apresenta nenhuma regra.
De uma maneira geral, a cabeça e o pescoço são as regiões mais atingidas durante lutas e agressões interpessoais, embora possa haver uma considerável variação relacionada ao contexto sociocultural de onde emergiu o conflito. As razões do agressor para a predileção por essas regiões são sem dúvida estratégicas e simbólicas. Sob o ponto de vista estratégico, a cabeça e especialmente a face são alvos atrativos, porque o ferimento pode ser muito doloroso, imobilizando temporariamente a vítima. Por outro lado, os ferimentos nessas regiões provocam sangramento e hematomas aparentes, os quais atuariam como um símbolo visível da dominação social do agressor (Walker, 1997).
As fraturas na face, geralmente provocadas por esmagamento, podem ser associadas à violência, sobretudo quando o indivíduo não apresenta outras fraturas ocasionadas por queda, uma vez que dificilmente esse tipo de acidente provocaria apenas uma lesão nos nasais ou no maxilar, regiões de menor probabilidade de impacto.
As fraturas nos terços médio e distal nas ulnas, denominadas 'fraturas de parry', têm sido atribuídas à elevação do antebraço em defesa de um golpe (Ortner et al., op. cit.; Merbs, op. cit.; Jurmain, 1991; Webb, 1995). Já as fraturas na mesma região dos rádios estão relacionadas a acidentes, uma vez que este osso é o que se articula com os metacarpos e, em caso de queda e tentativa de sustentação do corpo, receberia a maior parte da força de impacto. Essas inferências causais, no entanto, devem ser feitas com cautela, sempre com o suporte de informações contextualizadas e dados sobre violência adicionais, uma vez que uma queda com torção do braço também pode causar fratura no terço distal da ulna (Walker, 2001).
A ausência de fraturas de parry, em oposição a uma alta prevalência de outros sinais de violência, pode indicar que os indivíduos, quando alvo de agressões, estavam amarrados ou imobilizados, ou seja, impedidos de conter o golpe (Wilkinson, op. cit.). Esta sugestão, no entanto, só se aplica a lutas corpo a corpo. Uma outra explicação para a ausência dessas fraturas seria a ocorrência de confrontos a longa distância entre os oponentes, quando são utilizadas armas como o arco-e-flecha e as fundas para arremesso de pedras.
As pontas de projétil, por sua vez, têm sido regularmente associadas a episódios de violência (Jurmain, op. cit.; Lambert, op. cit.; Walker, 1997; Smith, op. cit.; Maschner, op. cit.; Keeley, 1997). A localização e a trajetória de penetração do projétil podem informar quanto à estratégia de ataque, indicando fuga da vítima ou emboscada, quando a penetração ocorreu pela parte posterior do corpo; ou ainda de cima para baixo, indicando um ataque frontal, quando a penetração ocorreu pela parte anterior do corpo, considerando-se que a vítima encontrava-se de pé.
Ainda que as lesões ósseas relacionadas à violência interpessoal sejam interpretadas de forma segura, é correto afirmar que elas subestimam quantitativamente a ocorrência dos confrontos. Não ficam registrados os ferimentos ocorridos nos tecidos moles ou aqueles cuja remodelação perfeita do tecido ósseo impossibilita a sua identificação.
A literatura moderna sobre traumas mais uma vez serve como base para os bioarqueólogos, demonstrando que, nos Estados Unidos, apenas 16,6% dos ferimentos de causa violenta são classificados como muscular/esqueletal (Rand et al. apud Walker, 2001), muitos deles, portanto, impossíveis de serem observados nos remanescentes arqueológicos. Segundo Walker (ibidem), em posição frontal o esqueleto humano ocupa cerca de 60% da área-alvo possível durante um ataque. Isso significa que um projétil arremessado aleatoriamente não irá atingir o esqueleto da vítima em cerca de 50% dos casos. Por isso, os percentuais estimados para traumas agudos violentos devem ser vistos como o número mínimo de lesões ocorridas nos indivíduos observados.

Um exemplo de estudo paleoepidemiológico da violência no passado
Um estudo realizado em esqueletos recuperados no cemitério pré-histórico de Solcor-3, em San Pedro de Atacama, no deserto de Atacama, Chile (Lessa, 1999; Lessa et al., 2000), apresentou interessantes resultados, suscitando novas reflexões sobre alguns aspectos teóricos da pré-história regional.
Naquele oásis, na região mais árida do mundo, viveram os milenares atacamenhos, agricultores e pastores de camelídeos que controlavam de maneira hegemônica o tráfego de caravanas pelo deserto de Atacama. Nessas caravanas eram transportados bens e produtos trocados entre localidades do litoral e dos altiplanos andinos. Por volta de 500 d.C. a cultura tiwanaku, originária de uma região próxima ao lago Titicaca, iniciou progressivamente um processo de expansão sobre o deserto de Atacama, estendendo sua influência política, ideológica e econômica até os oásis atacamenhos. A penetração da influência tiwanaku entre os povos caravaneiros do deserto teria sido estratégica, e a partir de um certo momento as caravanas de atacamenhos passaram a estender-se até o Titicaca.
Objetos típicos da cultura tiwanaku presentes nas tumbas do deserto passaram a sugerir a nova influência cultural, e metais preciosos e outros bens sugeriram a emergência de uma sociedade menos igualitária. Tais mudanças devem ter afetado também as redes de interação cultural, mantidas pelas ligações comerciais e sociopolíticas milenares. Não havendo sinais evidentes de conflitos bélicos nos sítios pré-históricos de Atacama, a hipótese de que a entrada dos tiwanaku no deserto teria se dado pela força parecia pouco provável. O modelo vigente que explica as relações entre as duas regiões admite que eficientes mecanismos persuasivos, de natureza ideológica e envolvendo práticas religiosas e uso de alucinógenos de inalação, teriam sido empregados.
Entretanto, as mudanças sociais sugeridas pela estratificação social e pela distribuição desigual de bens, assim como o direcionamento do esforço de trabalho atacamenho para novos pólos e aliados econômicos certamente provocaram o realinhamento dos interesses sociais. A partir desse contexto, foi testada a hipótese de que alguma forma de tensão social poderia ter emergido durante o período tiwanaku.
O estudo de 64 esqueletos — constituindo duas séries equilibradas de homens e mulheres adultos, encontrados em tumbas bem-conservadas, cujos bens indicavam tratar-se de representantes do período pré-tiwanaku e do período tiwanaku — permitiram medir a prevalência de lesões violentas e outros traumatismos. E também avaliar a mortalidade dos indivíduos naquele oásis, antes e depois da influência vinda do Titicaca.
Uma prevalência alta de indivíduos atingidos por pontas de projéteis encontradas ainda em seus ossos (35,2 %), grande número de fraturas de crânio (26,6 %) e a morte precoce, entre 18 e 30 anos (75%) caracterizam a série de esqueletos masculinos do período tiwanaku, estando praticamente ausentes na série do período anterior. No caso das mulheres, nenhuma mudança significativa parece ter ocorrido. Estes dados indicam que, apesar de não haver referência a estruturas arqueológicas sugestivas de conflitos bélicos, os homens atacamenhos de Solcor-3 estiveram mais expostos a ataques e morte precoce, quando comparados ao período em que a cultura tiwanaku ainda não havia chegado em Atacama.
A análise das lesões, em sua maioria de formato oval, indica golpes de pequena intensidade nos crânios, principalmente na região frontal, o que seria coerente com ferimentos causados pelo arremesso de pedras atiradas com fundas — que os arqueólogos admitem como um dos tipos de arma da região. Projéteis cuja penetração no corpo parece ter sido de cima para baixo e de trás para frente, considerando-se a postura de pé, sugerem que ataques do tipo emboscada, em penhascos, quebradas ou vales, característicos do relevo da região, poderiam ter atingido os caravaneiros. A natureza genérica de lesões e armas não permite especificar a fonte dos ataques, que poderiam se dar a partir de qualquer local ou vizinhança.
A comparação de ocorrência de outras lesões ajuda a identificar melhor a causa de morte desses indivíduos. Os sinais de infecção pleuropulmonar ativa, por exemplo, indicam que a mortalidade de homens jovens durante o domínio dos tiwanaku não teria se dado por pneumopatias. Esta alternativa seria bastante plausível devido à existência de condições epidemiológicas na região, graças ao clima desértico e seco, à exposição permanente à poeira mineral e ao uso de habitações fechadas de adobe. Este dado reforça a possibilidade de que as mortes entre os homens desse período tenham de fato uma relação com a violência (Mendonça de Souza, 2000).
No caso de Solcor-3, a análise paleoepidemiológica sugere que se estendam as observações e os testes de hipóteses para outros sítios de Atacama e se revejam os modelos explicativos para as relações pré-históricas daquele período.

Considerações finais
Apesar da grande quantidade de lesões ósseas associadas a episódios de violência mencionada na literatura paleopatológica, apenas a partir das duas últimas décadas o estudo desse aspecto do comportamento humano ganhou impulso. Nos estudos anteriores, essas lesões eram registradas de forma descritiva em estudos de caso, além de terem sua prevalência subestimada.
A endemização da violência — reforçada pela sua reafirmação como um padrão cultural em muitas sociedades modernas — tem respondido por percentuais de mortalidade e perdas laborais mais altos do que algumas de suas formas epidêmicas, como as guerras.
É natural, portanto, que uma sociedade tão preocupada com as rupturas da homeostase social dirija sua atenção para a compreensão da pré-história da violência. A ciência, por sua vez, move sua produção a partir dos temas mais destacados e de maior impacto, segundo o contexto na qual está inserida. Assim, os estudos osteológicos vêm desenvolvendo uma metodologia mais acurada para o diagnóstico diferencial dos sinais de violência. Isso enfatiza a sua importância sob o ponto de vista paleoepidemiológico, permitindo uma abordagem populacional contextualizada com ênfase interpretativa.
Mas muito ainda falta por conhecer sobre a origem e a natureza da agressividade humana — ainda estamos engatinhando nesta direção. Já podem ser observadas, no entanto, algumas diferenças e semelhanças entre os padrões de violência no presente e no passado e, conseqüentemente, no comportamento agressivo dos indivíduos. Um exemplo é a violência contra a criança, cometida na forma de espancamentos e sem relação com aspectos rituais. Este tem se revelado um fenômeno essencialmente moderno, não tendo sido observado nas séries esqueletais pré-históricas. O fato vem sendo interpretado como produto da falta de vigilância proporcionada por um controle social deficiente, associada ao anonimato urbano. Tal tipo de conduta seria impossível em sociedades passadas, organizadas segundo grupos de parentesco, em que cada ação individual era balizada dentro de um controle social rígido (Walker, 2001).
Por outro lado, a perpetuação de uma prevalência muito mais alta de violência interpessoal entre os homens jovens do que entre outros subgrupos, ao longo da história da humanidade, aponta para uma tendência de comportamento que extrapola as especificidades do contexto cronológico e cultural particular de cada sociedade. Logo, surge a pergunta: até que ponto os fatores sociais influenciam o comportamento? Recentemente alguns neurocientistas têm se debruçado sobre esta questão, com a neurogenética acenando com a expectativa de identificar os genes que afetam o cérebro e o comportamento, atribuir-lhes poder causal e, se for o caso, modificá-los. Mesmo admitindo que os fenômenos da existência humana são sempre, ao mesmo tempo e inexoravelmente, sociais e biológicos e que uma explicação adequada deve envolver os dois domínios, tal abordagem já não é suficiente para esses cientistas (Rose, 2001).
É claro que as falhas e distorções causadas pelo emprego do determinismo neurogenético para explicar fenômenos sociais complexos têm sido apontadas. As pesquisas sobre a violência endêmica que assola a humanidade estão enquadradas em um paradigma determinista, que busca as causas dos problemas sociais na biologia individual. É impulsionada por uma filosofia política que se regozija com os privilégios derivados das desigualdades de riqueza e poder, rejeitando medidas para reduzir tais desigualdades (idem, ibidem).
Cabe reforçar que a utilização de dados da paleopatologia, da neurogenética ou de quaisquer outros estudos é difícil e exige prudência. E que a interpretação da conduta humana, sobretudo no que se refere a questões surgidas nas interfaces étnicas ou de segmentos sociais é o maior dos desafios. A visão da questão da violência relacionada a etnias e situações históricas específicas, sob foco estreito ou tendencioso, pode distorcer perigosamente o discurso sobre a natureza humana, permitindo isolar e manipular eventos violentos e sua interpretação (Lessa et al., 2001).

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1 Carneiro (ibidem) faz uma distinção clara entre guerra e agressão, argumentando que os dois conceitos se superpõem, mas não significam a mesma coisa. Agressão é violência física realizada por um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo. Definida desta forma, a agressão ocorre entre animais bem como entre os homens; e também entre indivíduos do mesmo grupo, sendo portanto diferente da guerra. A guerra também é uma agressão, mas não meramente isso, e sim um tipo de agressão. De acordo com a definição de Ferguson (1984), a guerra é um fenômeno organizado, uma ação grupal determinada diretamente contra outro grupo, o qual pode ou não estar organizado para uma ação similar, envolvendo a aplicação real ou potencial de força letal.

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