A guerra é tema de debate na Antropologia desde fins do séc. XIX, outras ciências deram o seu contributo para este debate, na Arqueologia, o tema ganha interesse nas últimas décadas.
Segundo Carman e Harding (2004, p. 3), os arqueólogos que estudam a guerra baseiam-se em noções da Antropologia e da História, isto levou a um confuso número de termos que definem tipos de guerra. Em relação à guerra na Pré-Histórica temos então vários termos, por exemplo: históricos como guerra antiga (Carman e Harding, 2004, p. 3), termos geográficos como guerra oriental (Keegan, 1994, p. 387) e termos como guerra primitiva (Keeley, 1997, p. 8) ou guerra ritual (Guilaine e Zammit, 2002, p. 48). Qualquer destes termos tem a sua razão de ser, desde que explicado, e apontam uma ou mais características de uma guerra primordial. Gostava de me concentrar nos dois últimos, guerra primitiva e guerra ritual.
Para Keeley (1997, p. 9) os arquitectos do conceito de guerra primitiva foram Wright (1964) e Turney-Hight com a sua obra Primitive War em 1949. Estes dois investigadores concordavam num aspecto, que a guerra primitiva é diferente da guerra dos estados civilizados, a primeira seria inferior, com objectivos pessoais e pouco perigosa (Keeley 1997, p. 9-15).
Carman e Harding (2004, p. 3-4) apontam definições de guerra primitiva por Chaliand (1994, p. 7) como "…determined by subsistence and demography and … not very costly in lives" ou por Gray (1997, p. 106) como "…primitive, heroic, unorganized, ritual war…".
Para Quesada Sanz (1997, p. 44), a guerra primitiva tem mais a ver com as necessidades de subsistência e de manter o equilíbrio com o meio enquanto que a guerra organizada vai mais além e entra no político. Temos então uma guerra primitiva inferior, pessoal, desorganizada, uma luta pela subsistência determinada pela demografia e subsistência, uma guerra ritual. Vou tentar desmontar este conceito de guerra primitiva e apresentar a minha definição da mesma.
Os investigadores são um reflexo do seu tempo, Vandkilde (2003, p. 127) refere mesmo que o aparecimento de um grande número de estudos sobre a guerra, na década de 90 no séc. XX, está enraizado nos mitos, na política e na guerra das sociedades contemporâneas.
Boaventura (1988, p. 52), adaptando Clausewitz, afirma que hoje o objecto é a continuação do sujeito por outros meios, canalizando para o sujeito, para o investigador contemporâneo um maior peso no resultado das suas investigações.
Keegan (1994, p. 387) considera que a guerra contemporânea é terrível e torna-se difícil imaginar outro tipo de guerra diferente, como a primitiva que limita os danos, através de excepções, convenções e ritual.
Quesada Sanz (1997, p. 45) chama a atenção para o conceito ocidental de guerra, em que se procura uma batalha campal sanguinária que tudo decide, uma herança romana. Nas palavras de Keegan (1994, p. 98): "…ritual battle is of greatest interest to military historians, if only because traces of it are so evidently present in what we know about civilized war.".
Existe o preconceito de ver a guerra das sociedades primitivas a partir da terrível guerra contemporânea e ocidental, que é aquela que o sujeito conhece, se por comparação não encontramos semelhanças então não temos verdadeira guerra, apenas uma guerra ritual. O ritualizar da guerra primitiva parece-nos uma continuação da perspectiva de Rousseau e uma nova pacificação da pré-história.
Segundo Otterbein (2004, p. 34)temos uma continuação do mito do selvagem pacífico.
Para Keeley (1997, p. 22), a hipótese de uma guerra primitiva ritual tem sido transformada num novo conceito de paz pré-histórica, de novo Rousseau.
O pioneiro Turney-Hight, apesar de considerar a guerra primitiva como inferior à dos estados civilizados, reconhece algumas vantagens nesta, alguns povos primitivos, com uma população pequena e armas inferiores conseguiram fazer frente a estados colonizadores (Keeley 1997, p. 14).
Os povos pré-estatais usaram a guerra de guerrilha para infligir derrotas a estados, esta guerra primitiva têm sido usada ao longo da História desde as florestas da Germânia (séc. I), passando pela reconquista cristã da Península Ibérica (séc. XIII), até às montanhas afegãs (séc. XXI) Este tipo de guerra é tão eficaz que tem sido estudado e usado pelos exércitos estatais contemporâneos.
Keegan (1994, p. 387) considera importante não idealizar a guerra primitiva, uma vez que esta pode tornar-se muito violenta.
Clastres et al. (1980, p. 44) afirma mesmo que o ser social primitivo repousa sobre a guerra.
Otterbein (2004, p. 35), no seu estudo de 24 sistemas políticos descentralizados, identificou apenas 14% que travam batalhas combinadas, os restantes preferiam começar a guerra com ataques surpresa. Keeley (1997, p. 174) conclui que a guerra primitiva e pré-histórica é tão terrível e eficaz como a sua versão histórica e civilizada.
A palavra ritual segundo a Enciclopédia Wikipédia pode ser definida como "…uma acção simbólica formalizada e pré-determinada normalmente praticada num ambiente particular de forma regular e periodicamente…".
No Collins Dictionary (1996), ritual é "…a series of actions witch are traditionally carried out in a particular situation…".
O ritual faz parte da sociedade humana, sendo mesmo uma forma de identidade, terá sempre que ter um papel numa actividade como a guerra. O Ritual directamente relacionado com a magia, com mito e com a religião, faz parte de uma super-estrutura mental e simbólica dos sistemas sócio-culturais (Harris, 2004, p. 547). Enquanto que a guerra encontra-se no nível estrutural dos sistemas sócio-culturais na regulação das relações interpessoais (Harris, 2004, p. 413). O ritual existe num nível mental e simbólico enquanto que a guerra existe num nível estrutural das relações.
Para Chamberlin (2006, p. 47): "…ritual infuses war with symbolic meaning in the Southwest as among other small-scale societies.".
Para Vilaça (1998, p. 214): "Independentemente dos tempos e dos espaços, os rituais foram sempre utilizados para ajudar a manter e a preservar a ordem social.".
O ritual permite explicar, organizar e justificar a guerra, a guerra ritual não é um tipo de guerra, toda a guerra tem os seus rituais enquanto parte de uma determinada cultura.
Citando Mercer (2004, p. 156): "…al warfare is ceremonilised and ritualised…".
Os rituais na guerra primitiva servem para unir os guerreiros (Segarra Crespo, 1997, p. 24) têm como objectivo desumanizar o inimigo (Chamberlin, 2006, p. 47), são utilizados para encorajar e justificar a morte do adversário. Nas palavras de Chamberlin (2006, p. 47): "…war involved valuation and propriety strategies of symbolic conflict … a rejection of opponent’s cultural existence…".
Os rituais têm também o importante objectivo de diminuir a eficácia da guerra (principalmente a guerra interna), permitindo algum controle dentro de um leque de leis e regras.
Segundo Keegan (1994, p. 98) este é o papel de todo o simbolismo na guerra interna dos Yanonamo.
Em muitos grupos, que por uma razão ou outra deixaram de ter guerra, continuam a existir danças de guerra, associações guerreiras e outros rituais associados à guerra (os Esquimós da Gronelândia ainda cantam a sua vitória sobre os invasores Vikings na Idade Média).
Segundo Guilaine e Zammit (2002, p. 247-248) em relação aos sacrifícios: "El grupo, con tensiones pero frenado por una série de normas, puede liberar su furor en un acto ritual: el sacrifício, que espia todas as faltas e represiones.".
Todos estes rituais tem um papel dentro de um contexto de guerra, esta guerra não deixa de ser efectiva, pode ter um grande número de fatalidades e levar mesmo à aniquilação de um determinado grupo num momento ou num longo processo de competição com outros grupos (Keeley, 1997, p. 88-94).
A guerra primitiva pode ser eficaz e mortal não deixando de ser ritual.
A palavra ritual, segundo o Dicionário de língua portuguesa (1998) é também definida como "…cerimónia, protocolo…", esta definição está bem enquadrada no mundo militar contemporâneo, basta observar qualquer quartel ou parada. O ritual é parte importante de todas as instituições militares e foi ao longo dos tempos.
Entre os gregos existiam mesmo batalhas rituais (Quesada Sanz, 1997, p. 43). Estas batalhas eram disputadas por um número igual de soldados armados de igual modo, numa delas as regras foram mesmo inscritas num pilar e eram claras na proibição do uso de projécteis, apesar disto estas batalhas eram mortais resultando em verdadeiras chacinas (O’Connell, 1995).
Entre as primeiras sociedades estatais temos o caso dos Aztecas, as suas guerras obedeciam a rituais, de modo a que o inimigo fosse capturado vivo para depois ser sacrificado. Existiam mesmo as batalhas das flores que eram combinadas e tinham como único propósito conseguir vítimas para os sacrifícios (Townsend, 2003, p. 204). Segundo o mesmo autor estas batalhas rituais não são só características da América Central mas existem entre várias sociedades tribais pelo Mundo.
Otterbein (2004, p. 38) vê a guerra dos povos sem escrita tão ritual como a dos povos históricos e modernos.
O registo arqueológico traz-nos habitats fortificados, rituais funerários (de guerreiros), sacrifícios, recolha de troféus, representações artísticas (de armas, guerreiros e duelos), armas isoladas ou em depósito que têm sido vistos como parte de um mundo ritual pré-histórico, considerados mais como símbolos de poder e hierarquia do que como evidências de guerra na Pré-História. Parece-me que se uma sociedade tem como símbolos armas e fortificações certamente que a guerra faz parte da sua cultura.
Como refere Kristiansen (1998, p. 247): "When you are performing a ritual you have in your mind, implicitly and indirectly, that the sword is also a weapon.".
Em relação ao simbolismo das armas na Idade do Bronze em Portugal, Vilaça (1998, p. 214) diz que "…estamos perante uma sociedade que não deixa de ser violenta, na medida que fundamenta o seu poder na coação, através da manipulação ideológica da cultura material.".
Referindo-se ao mesmo período, Senna-Martinez (1998, p. 222) menciona uma interessante situação de "paz armada", a necessidade de uma paz armada implica que a guerra é uma possibilidade a ter em conta.
Para Harding (2003, p. 301) "… la presencia de escenas de combate de lucha e la representación frecuente de armamento indican claramente la importancia de estos aspectos en la vida de la Edad del Bronce.".
No entanto, não podemos esquecer que o ritual faz parte de toda a guerra, pelas palavras de Kristiansen (1998, p. 247) e de novo para a Idade do Bronze: "From the building of burials and the ritualization of landscape to the fortifications, it all corresponds to the sequence from ritual to coercion. It is not "either, or it is both".
Gostava de mencionar Otto et al. (2006, p. 15): "Ritual war is a rather unclear concept that is been misused to postulate peaceful conditions in societies without centralized political power. It must be pointed out that "ritual war" will always merely be one facet of military reality, with all its implications of human suffering and death".
Antes de definir guerra primitiva gostava de esclarecer que este conceito não é de todo depreciativo mas relativo a um momento primordial.
Segundo o Dicionário de língua portuguesa (1998) a palavra primitivo tem o seguinte significado: "…que foi o primeiro a existir; relativo aos primeiros tempos…".
Gostava também de nomear as sociedades pré-estatais que desenvolvem uma guerra primitiva, portanto sociedades do tipo bando, tribo e chefado.
Para a definição do conceito de guerra primitiva baseio-me na definição alargada de guerra de Otterbein (2004, p. 9): "…armed combat between political communitie…".
Frigolé Reixach (1988, p. 66) faz uma distinção bastante clara entre guerra e feud com a seguinte definição: "A guerra, ao contrário [do feud], não prevê nenhuma contrapartida: trata de um assunto público, cujo objectivo é não só dar morte ao adversário mas também submetê-lo e destruir ou apropriar-se de parte dos seus bens.".
Kelly (2000, p.3-4) define guerra como: "War entails armed conflict that is collectively carried out. It differs from other (often antecedent) forms of conflict such as disputes and altercations by the fact that participants employ deadly weapons with deadly force.".
Ferguson apud Helbling (2006, p.114) traz-nos a seguinte definição de guerra: "…an organized, purposeful action, directed against another group…involving the actual or potential application of lethal force…".
Temos uma definição mais exaustiva de guerra primitiva com Prosteman apud Dennen (1995, p.73): "A group activity, carried on by members of one community against members of another community, in witch it is the primary propose to inflict serious injury or death on multiple nonspecific members of that other community, or in witch the primary propose makes it highly likely that serious injury or death will be inflicted on multiple nonspecific members of that community in the accomplishment of the primary purpose.".
Baseando-me nestes autores, entre muitos outros que fizeram parte das minhas leituras, a minha definição de guerra primitiva / Pré-Histórica é a seguinte: Violência interpessoal colectiva entre duas ou mais comunidades políticas distintas, com o uso de armas tendo como objectivo causar fatalidades, por um assunto colectivo e sem hipótese de compensação.
Referências:
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